Antes de chegar ao que define como "cinebiografia", Miguel tentou um roteiro de
ficção. Acabou desistindo diante de dificuldades previsíveis
– a começar pela escolha de quem viveria o papel-título, numa
trajetória que vai de 1913 a 1980 – e partiu para o documentário.
O formato é arriscado. Se preso à obrigação da imparcialidade,
freqüentemente se torna excessivamente didático, chato. Se opta por
ser declaradamente parcial, facilmente descamba para a exaltação
simplificadora. Vinicius consegue evitar os dois extremos. O filme não
tem a pretensa isenção que o gênero sugere, mas soma a um
olhar amoroso sobre o poeta um grande despudor ao retratá-lo. "Queria mais
emoção do que informação", diz Miguel Faria. Deu certo.
Há espaço para o crítico Antonio Candido sintetizar a importância
de Vinicius como o poeta que, sem abrir mão de recursos formais tradicionais,
se aproximou, mais do que nenhum outro, da destruição do tema poético
"nobre" pretendida pelos modernistas. Mas também para uma inspirada Tônia
Carrero detalhar, em tom de confidência, as aventuras amorosas do amigo.
"Ele era capaz de qualquer baixeza para conquistar uma mulher", diz.
Vinicius
aparece inteiramente bêbado com um Tom Jobim em igual estado etílico
cantando Pela Luz dos Olhos Teus; entoando Canto de Ossanha acompanhado
por um Baden Powell quase imberbe e por um bando de jovens em animado sarau; ovacionado
em shows pelo Brasil e pelo mundo; e casando-se com cada uma de suas oito mulheres.
Parceiros como Chico Buarque e Edu Lobo destacam o papel primordial desempenhado
por Vinicius na bossa nova e, em seguida, nos afro-sambas compostos com Baden
Powell, ao mesmo tempo em que traçam um belo retrato humano. Chico lembra
Vinicius desde o tempo em que a família de Sérgio Buarque de Holanda
vivia em Roma, numa casa que se tornava mais alegre toda vez que o poeta avisava
que apareceria para uma visita. Edu se emociona ao recordar o último encontro
entre os dois, na Bahia – além de dar um pequeno show de virtuosismo
ao violão ao exemplificar a "batida dobrada do Baden" em Berimbau.
Ferreira Gullar cita o poeta americano T.S. Eliot ("Escrever é fugir da
emoção") para mostrar como a poesia foi o caminho encontrado por
Vinicius para dar conta da enorme emoção que carregava. E as filhas
mostram como, do lado familiar, era por vezes bem difícil conviver com
tamanha inquietude artística e amorosa.
Esses depoimentos, no total de dezesseis, são a grande força do
filme, junto com belas imagens fotográficas e cinematográficas –
não só do próprio Vinicius como do Rio de Janeiro nas décadas
de 30, 40, 50 e 60. A narrativa é costurada por um show fictício
sobre a vida de Vinicius, estrelado por Camila Morgado e Ricardo Blat e com participações
de vários cantores. Esse foi o recurso encontrado para garantir a presença
no filme de alguns dos poemas mais conhecidos de Vinicius, como Soneto de Fidelidade
("que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito
enquanto dure"). O resultado, nesse ponto, é um tanto irregular. Blat sai-se
melhor que Camila na difícil arte da declamação, principalmente
na bem sacada versão para rap do poema Blues para Emmett (sobre
o assassinato do jovem negro Emmett Louis Till, que ousou assoviar para uma mulher
branca no Mississippi de 1955), no qual é acompanhado pelos rappers Nego
Jeff e Bom. Mas, no conjunto, esse único elemento de ficção
que restou do projeto original cumpre a contento sua função. Ao
final, o público sai do cinema convencido de que Vinicius tinha mesmo razão
em odiar o tal rótulo de poetinha. E é Caetano Veloso quem sintetiza
a escolha que o poeta fez, na vida e na arte, ao relatar uma confidência
que envolvia também o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto
– conhecido por seus versos secos e por uma enxaqueca que durou cinqüenta
anos. "O Vinicius me contou: 'O Cabral me disse uma vez que, se houvesse um poeta
com o meu talento e a disciplina dele, o Brasil teria finalmente um grande poeta'.
Mas ele fica lá com aquela dor de cabeça. Eu não queria viver
com essa dor de cabeça por nada." Lucila Soares
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