Por exemplo, esta minha capacidade de escrever é deveras
hoje, para mim, uma dádiva além de uma condenação.
Se não tivesse a escrita onde me compreender e onde criar,
teria de me render às pessoas e ao conhecimento e fala alheios. Com a escrita
posso estar, preservar e criar o paraíso. Talvez não só o meu mas um que possa
englobar quem o queira aceitar, compreendendo-o.
Então não é que hoje, como no fundo sempre, a grande arma é
a inteligência? Com ela compreendes e passas à frente das adversidades e de
todos os sofrimentos.
A escrita é a arte mais técnica e tecnológica do espírito. Não
havendo qualquer obstáculo ou utensílios que desviem a atenção. Na escrita a
alma é manifestada imediatamente pela inteligência e pela técnica. O único
objecto entre a escrita e a alma é, neste caso, uma caneta bic e a tela, um
caderno de capa dura.
Neste caso é fantástico o poder da escrita. Fantástico no
sentido de ser deveras mágico. A compreensão é tudo. É preciso assumir que se
compreende. E toda esta merda não tem de ser uma condenação! Não é o meu
compreender que é uma condenação, é antes os outros não compreenderem (e não
quererem compreender) que é para mim, que compreendo, uma condenação. Mas que
se fodam os inúteis sofrimentos! Eu não sou católico nem enveredo por
culpabilidades. Responsabilizo-me e assumo o que sou e penso. A vida é dos
fortes e eu nisto sou-o. Sofrer é desnecessário à acção mas útil à arte e à
compreensão. Seja como for já sofri tudo o que tinha a sofrer e sofro agora a
dor física de tanto saber. De resto porra para o sofrimento, é a vida que
interessa. Se escrever cansa a vida, tem-se de a exacerbar e a espicaçar na
escrita. Há que trazer a arte para a vida. Há que trazer o sonho a respirar o
ar que eu respiro. Tudo tem de ser espírito e tudo tem de ser inteligência,
para que o humano volte a ser humano, volte a ser orgânico. Estamo-nos a tornar
máquinas porque as máquinas só sabem e fazem o que lhes mandam. Ora, o ser
humano faz o que entende que é o correcto. Se a verdade é explícita, ele
reconhece-a. Coisa impossível para a máquina. O humano tem o poder de
compreender e fazer o que acha o correcto sem que para isso seja mandado. Esse
é o grande poder de ser humano e é por isto que eu acho que vêem aí profetas
que lembram isto à gente.
A civilização ensina-nos a obedecer mas isso é anti-natural
ao ser humano e é isto que tem de ser lembrado. O livre arbítrio não é caos mas
liberdade. Quanto mais esta civilização avança, mais a completa escravidão nos
é incutida, mais bebés nascem escravos.
Tem de se acabar com o tempo da máquina. Ela é inferior a
nós, não sente; e sentir é o que nos liga a Deus, que é como dizer que nos faz
Deus.
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