segunda-feira, 8 de julho de 2013

Tudo, menos poetinha Finalmente, um retrato à altura de Vinicius de Moraes, grande poeta e figuraça

Vinicius de Moraes detestava ser chamado de "poetinha", apelido que tinha muito mais relação com o personagem folclórico que ele cultivou a vida inteira do que com sua riquíssima produção – 400 poemas, 400 letras de música. No auge da irritação, dizia que o rótulo só podia ser "invenção do marido de alguma mulher que eu comi". De fato, apesar de ser um dos grandes nomes da poesia brasileira do século XX, Vinicius só teve sua obra devidamente valorizada pela crítica já quase na alvorada do século XXI. Depois de reparada essa injustiça, no entanto, passou a ser quase uma gafe falar de algo mais do que sua excelência poética. O que é uma outra injustiça, porque Vinicius de Moraes foi, sim, uma figuraça que merecia havia muito tempo um retrato à sua altura. A essa tarefa, o cineasta Miguel Faria Jr. dedicou os últimos três anos, tendo como produtora Susana de Moraes, primeira filha do poeta. O resultado é o longa Vinicius, que estréia nesta sexta-feira em circuito nacional.
Antes de chegar ao que define como "cinebiografia", Miguel tentou um roteiro de ficção. Acabou desistindo diante de dificuldades previsíveis – a começar pela escolha de quem viveria o papel-título, numa trajetória que vai de 1913 a 1980 – e partiu para o documentário. O formato é arriscado. Se preso à obrigação da imparcialidade, freqüentemente se torna excessivamente didático, chato. Se opta por ser declaradamente parcial, facilmente descamba para a exaltação simplificadora. Vinicius consegue evitar os dois extremos. O filme não tem a pretensa isenção que o gênero sugere, mas soma a um olhar amoroso sobre o poeta um grande despudor ao retratá-lo. "Queria mais emoção do que informação", diz Miguel Faria. Deu certo. Há espaço para o crítico Antonio Candido sintetizar a importância de Vinicius como o poeta que, sem abrir mão de recursos formais tradicionais, se aproximou, mais do que nenhum outro, da destruição do tema poético "nobre" pretendida pelos modernistas. Mas também para uma inspirada Tônia Carrero detalhar, em tom de confidência, as aventuras amorosas do amigo. "Ele era capaz de qualquer baixeza para conquistar uma mulher", diz.



Vinicius aparece inteiramente bêbado com um Tom Jobim em igual estado etílico cantando Pela Luz dos Olhos Teus; entoando Canto de Ossanha acompanhado por um Baden Powell quase imberbe e por um bando de jovens em animado sarau; ovacionado em shows pelo Brasil e pelo mundo; e casando-se com cada uma de suas oito mulheres. Parceiros como Chico Buarque e Edu Lobo destacam o papel primordial desempenhado por Vinicius na bossa nova e, em seguida, nos afro-sambas compostos com Baden Powell, ao mesmo tempo em que traçam um belo retrato humano. Chico lembra Vinicius desde o tempo em que a família de Sérgio Buarque de Holanda vivia em Roma, numa casa que se tornava mais alegre toda vez que o poeta avisava que apareceria para uma visita. Edu se emociona ao recordar o último encontro entre os dois, na Bahia – além de dar um pequeno show de virtuosismo ao violão ao exemplificar a "batida dobrada do Baden" em Berimbau. Ferreira Gullar cita o poeta americano T.S. Eliot ("Escrever é fugir da emoção") para mostrar como a poesia foi o caminho encontrado por Vinicius para dar conta da enorme emoção que carregava. E as filhas mostram como, do lado familiar, era por vezes bem difícil conviver com tamanha inquietude artística e amorosa.
Esses depoimentos, no total de dezesseis, são a grande força do filme, junto com belas imagens fotográficas e cinematográficas – não só do próprio Vinicius como do Rio de Janeiro nas décadas de 30, 40, 50 e 60. A narrativa é costurada por um show fictício sobre a vida de Vinicius, estrelado por Camila Morgado e Ricardo Blat e com participações de vários cantores. Esse foi o recurso encontrado para garantir a presença no filme de alguns dos poemas mais conhecidos de Vinicius, como Soneto de Fidelidade ("que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure"). O resultado, nesse ponto, é um tanto irregular. Blat sai-se melhor que Camila na difícil arte da declamação, principalmente na bem sacada versão para rap do poema Blues para Emmett (sobre o assassinato do jovem negro Emmett Louis Till, que ousou assoviar para uma mulher branca no Mississippi de 1955), no qual é acompanhado pelos rappers Nego Jeff e Bom. Mas, no conjunto, esse único elemento de ficção que restou do projeto original cumpre a contento sua função. Ao final, o público sai do cinema convencido de que Vinicius tinha mesmo razão em odiar o tal rótulo de poetinha. E é Caetano Veloso quem sintetiza a escolha que o poeta fez, na vida e na arte, ao relatar uma confidência que envolvia também o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto – conhecido por seus versos secos e por uma enxaqueca que durou cinqüenta anos. "O Vinicius me contou: 'O Cabral me disse uma vez que, se houvesse um poeta com o meu talento e a disciplina dele, o Brasil teria finalmente um grande poeta'. Mas ele fica lá com aquela dor de cabeça. Eu não queria viver com essa dor de cabeça por nada."

Lucila Soares

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