sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Lúcia. O cheiro a naftalina entre roupas e lençóis silenciava o grilo que cantarolava no jardim, tal era a agressividade com que se entranhava nas narinas. Aquele aroma era parte de um toque, jeito tão caracteristico, que fazia renascer em si o sorriso.
Lourenço. Tão pequeno que era e tinha como da terra ao céu tanto de loucura como de coragem. Parecia que o diabo lhe tinha aberto o conteúdo e arrancado os sentimentos à colherada. Sufocava no meio das palavras que não lhe saíam por viver as emoções em silencio.
Um dia, disse que o amor não passava de uma pequena atitude que com o tempo daria lugar a um vazio meramente preenchido pelo respeito, enquanto os ideais permanecessem firmes. Mesmo assim, Lúcia continuava a amá-lo como melhor sabia fazer. A exuberancia dos seus gestos era única, ela olhava-o sem pestanejar, admirando o modo como barrava manteiga nas torradas, todas as manhãs, achando que era essa a forma delicada com que pincelava a vida. Às vezes, parecia perceber de tudo, ao ponto de saber sempre o certo e o errado, como que por instinto. Foi Lourenço que lhe mostrou a importância de se ter braços firmes e de deixas as gotas de suar fluir pela cara, em dias de trabalho sob calor estival. Também foi Lourenço o primeiro a mostrar-lhe o cheiro a terra húmida. Prometia-lhe todas as noites "sopinha de canja", sua preferida, para o jantar e Lúcia vivia os dias ansiando esse momento. Queria o futuro todos os dias, um futuro que vinha sempre às sete da tarde. Juntava as bolinhas de massa na borda do prato e fazia um sorriso, porque era um sorriso que se formava no seu estômago daquela forma, se comesse tudo. Depois, cresceu e desiludiu-se quando percebeu a digestão dos alimentos. Pormenores sem importância numa vida repleta de digestões enfadonhas ou leves, conforme se temperam os dias.
O tempo passou uma rapidez que ninguém entende e hoje Lúcia não o tem, nem o sabe, porque desapareceu entre documentos e pressas, sem lhe dar, sequer, um beijo. No entanto, quis ficar enroladda naquela cama de 1964, como se fosse buscar aos sentidos algo que lhe pertencesse, como se a Natureza lhe segredasse de forma clara e óbvia que ele, agora, era um átomo translúcido que pairava na invisibilidade do ar.
Desculpa, não tive outra hipótese. Entre vapores de naftalina precisava que conhecesses esta filha que não sabias ter, que não cuidaste com carinho nem ensinaste a andar de bicicleta. Achei que estivesse na hora, não podia adiantar mais, porque sinto-me merecedora de também poder querer, todos os dias, um novo futuro, às sete da tarde. Que horas são, afinal?


Lido na revista LER nº118 na secção 15/25 (onde se promovem textos de autores desconnhecidos dos 15 aos 25 anos de idade).
Gostei tanto de ler este que tive de o aqui expor e partilhar.
Ele é de uma tal Jeniffer Jesus, de 20 anos e de Santo André de Vagos, Aveiro.

Sem comentários: